Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito da multidão reeditado

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Não foi apenas Jonh Travolta quem fez muita gente perder o rebolado com o ritmo da discoteca. A partir dos anos 1980, a explicitação da chamada Crise do Leste Europeu levou vários/as intelectuais a abandonar as perspectivas de classe, no embalo das interpretações acerca da emergência de uma suposta sociedade pós-industrial. Muita coisa mudou desde então, especialmente nas políticas de proteção social e nas normas de regulação dos contratos de trabalho, porém, boa parte das previsões eufóricas daquele período sobre o fim da centralidade do trabalho e, portanto, da luta de classes como motor da história literalmente dançou.

A queda do regime soviético deixou ainda mais escondida a crise sistêmica do capitalismo mundial. Enquanto os propagandistas liberais pregavam o fim da história, o grande capital estava promovendo uma grande reestruturação na gestão das unidades produtivas, redistribuindo em nível mundial as várias etapas dos processos fabris. Muitas das atividades de trabalho, até então organizadas em uma mesma planta industrial, passavam se integrar em rede, de produção e de comercialização, num intenso processo de terceirização e de terciarização, em especial com a difusão em larga escala dos chamados serviços industriais e dos centros de distribuição internacional de peças, de kits modulares para montagem e de acessórios.

Tudo isso foi possível em meio à difusão das inovações de processos e de produtos, associando incrementos cibernéticos à mecânica de precisão, à biotecnologia, à química fina e, simultaneamente, integrando atividades produtivas, de distribuição e de consumo num novo padrão informacional com base na tecnologia digital.

Mesmo passadas todas essas décadas, desde o surto dos embalos sabáticos, ainda é possível perceber muita confusão entre intérpretes do mundo do trabalho. Talvez, uma das razões para a dificuldade de precisão analítica esteja na crença em torno da doutrina do pleno emprego, cuja derivação pós-industrialista combinaria a ideia de que, na “sociedade do conhecimento”, a maior preocupação da humanidade não seria mais o desemprego, mas, sim, o que fazer com o tempo livre.

Perceba a criatividade no encadeamento de “supostos” presente em um raciocínio bastante esquisito: a expansão da digitalização da vida, em especial a difusão de programas de código aberto, seria a base da produção social e impediria a propriedade privada dos meios de produção. Oba! Chegaríamos logo ao mundo do empreendedorismo, a partir do qual não existiria mais patrão! A onda agora é o crowdwork, o trabalho-de-multidão!

Enquanto se desdobram as derivações doutrinárias, o rei capital observa pasmado a realidade nua e crua do acirramento da luta de classes. Ao contrário dos países da maravilha que se difundiriam no mundo digitalizado, a ganância capitalista está produzindo um remake das formas violentas de acumulação, ante as dificuldades de reverter o cenário de crises que vêm se reproduzindo há mais de cinco décadas.

Multidão não luta. Para além das aparências, tem sido exatamente nas novas atividades do serviço digital que estão emergindo e se multiplicando mundo afora movimentos de greve organizados por trabalhadores e trabalhadoras subempregados/as em plataformas cibernéticas. A contestação fundamental tem sido a reduzida remuneração por várias formas de trabalho parcial, de trabalho por tarefas, bem como as dificuldades em compensar os prejuízos recorrentes, provocados pelo uso intensivo de equipamentos próprios e o alto custo dos insumos básicos. Pior que isso tem sido a árdua atividade de vigilância e de cobrança necessária para receber o que ficou acordado, dada a alta flexibilidade dos novos contratos digitalizados que, muitas vezes, simplesmente não são cumpridos pelos proprietários das plataformas, situação que se agrava nos casos de contratantes estrangeiros, nos quais não se sabe a quem recorrer.

A tal sociedade do conhecimento, antes de trazer preocupações com o ócio, está reproduzindo em outro patamar antigas marcas capitalistas das múltiplas e longas jornadas, assim como da intensificação do ritmo, até o limite da exaustão física e mental de quem efetivamente trabalha. Enquanto isso, os proprietários dos meios de produção digitais relevantes se mantêm acumulando grandes fortunas, com baixos investimentos e sem assumir qualquer risco operacional. O único risco que assumem de fato, tem sido com aplicações especulativas, tais como derivativos criptomoedas etc., atividades das camadas privilegiadas, que podem arriscar tudo em apostas, pois, não lhes custou quase nada promover a acumulação violenta por meio de plataformas digitais e pelos antigos instrumentos usados para se apropriar da maior parte da riqueza social produzida.

A história segue aberta em contínuo movimento. O que virá pela frente dependerá do estágio da luta de classes que sujeitos históricos forem capazes de construir. Como nos ensina Heráclito de Éfeso, tudo é estático, exceto o movimento.

COMPARTILHE: